Entre as curvas dos rios, paranás e lagos que cortam a Floresta Amazônica surge uma iniciativa que, mais que proteger fauna e flora, promove a preservação da sociobiodiversidade amazônica: o manejo comunitário do Arapaima gigas, nome científico do pirarucu, que dá nome ao livro – o maior peixe de escamas de água doce do mundo.
Atividade realizada de forma sustentável por ribeirinhos e indígenas, essa modalidade de pesca começou a ser praticada há mais de duas décadas no interior do Amazonas, como uma alternativa à ameaça de extinção da espécie, e atualmente está presente em diversas áreas protegidas da Amazônia.
Mais do que recuperar a população do ‘gigante das águas’ na região, o manejo reuniu homens, mulheres e jovens em associações comunitárias e cooperativas de pescadores, organizando e profissionalizando a produção de pescado, que hoje segue regras sanitárias, ambientais e fiscais rígidas que garantem ao pirarucu amazônico espaço nos mercados consumidores nacionais e internacionais mais exigentes.
Isso sem falar no resgate da dignidade dos povos tradicionais que vivem na floresta, em áreas de preservação ambiental, uma vez que o manejo comunitário de pirarucu vem permitindo a essas populações a conquista de melhorias em suas rendas familiares, condições e expectativas de vida.
A rotina de pesca, antes ditada apenas pelos ciclos de cheia e seca dos rios, deu lugar ao planejamento coletivo, novas tecnologias, união do conhecimento tradicional ao científico, fortalecimento das organizações sociais e ao empreendedorismo, transformando um trabalho antes artesanal e solitário em um negócio comunitário que cresceu ano após ano desde a primeira experiência, em 1999, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no Amazonas, e que atualmente é uma das atividades sustentáveis mais lucrativas na região amazônica.
Para que o manejo de pirarucu chegasse a esse estágio, no entanto, comunidades ribeirinhas inteiras, apoiadas por instituições de pesquisa, órgãos técnicos e organizações não governamentais, tiveram que percorrer uma longa caminhada – literalmente. Em algumas comunidades, os ribeirinhos precisam caminhar por horas com os pirarucus (que muitas vezes pesam mais de 100 kg, cada) nas costas para levá-los dos lagos até as comunidades.
Acompanhar de perto e poder traduzir um pouco dessa realidade em imagens e palavras é ter a (fundamental) oportunidade de colocar em foco os povos da floresta e divulgar o exemplo de quem está, diariamente, provando que é possível promover o desenvolvimento econômico sem destruir o meio ambiente quando se une sustentabilidade, força de vontade e respeito à natureza.
São retratos do cotidiano do manejo sustentável comunitário de pirarucu em áreas protegidas do Amazonas que reunimos neste ensaio, que pretende capturar a essência do ribeirinho e a sua relação com o ‘rei’ dos rios amazônicos com toda a sensibilidade das lentes do fotógrafo Bruno Kelly, um paulista radicado no Amazonas que acompanha a pesca manejada de pirarucu na Amazônia desde 2012.
Estes retratos do manejo de pirarucu nos revelam, mais do que um modelo de sucesso para a gestão de negócios comunitários e uma iniciativa de fortalecimento social, com ganhos econômicos e ambientais, a certeza de que o desenvolvimento sustentável pode ser, sim, o melhor caminho possível entre os sinuosos desafios amazônicos.
“Quando eu era criança, aqui tinha a maior produção de pirarucu da região. Mas quando a gente era novo achava que podia tirar o peixe quanto quisesse, que ia morrer e não ia acabar. Pescador matava a mãe e não poupava nem o filhote, aí o peixe sumiu. E só voltou mesmo depois do manejo, com a gente cuidando. Pra quem viu esse lago seco, é uma maravilha ver o peixe pulando assim e saber que hoje a gente também faz parte disso daí. Essa é a herança que vai ficar pros meus netos.”
Esmeraldo Antunes Correa, pescador
No meio da floresta, o bailado das águas é cortado pelo riscar das canoas, em um ir e vir sem fim, que se mistura a esse cenário tão regional e tão único.
O rio é o fio que une o caboclo à Amazônia, costurando uma relação de cumplicidade que retrata a interdependência entre todas as espécies que aqui habitam, entre elas duas em especial: o homem e o peixe. E não há, nos rios da Amazônia, peixe tão majestoso quanto o gigante Arapaima gigas, o pirarucu.
“Depois que conseguimos nos organizar como comunidade é que nós fomos pensando em preservar. Fomos zelando, zelando, zelando. E graças a Deus as pessoas que iam chegando só pensavam em preservar para ter no futuro. E através das nossas organizações a gente conseguiu recuperar o que não tinha mais. Hoje temos com fartura. Você quer comer um tambaqui, você quer comer um pirarucu, você quer comer um jacaré, o que você quiser comer, temos hoje pra nós e pras pessoas que precisam também. Pra mim isso é um privilégio.”
Josué de Castro, 45, pescador
Mais do que a sobrevivência do ribeirinho, esse gigante das águas carrega toda a mística de quem guarda o corpo de um príncipe guerreiro adormecido nas profundezas do rio. Pirarucu foi, ele mesmo, um pescador aos olhos da mitologia indígena.
Filho do chefe dos Uaiás, ele não herdou a bondade do pai e, acusado de ter assassinado, sem motivo algum, dois indígenas de sua própria tribo, foi castigado pelos deuses com uma tempestade torrencial, trovões e raios, um deles o atingindo em cheio no coração.
Com a mata ao seu redor ardendo em chamas e ainda resistindo em se arrepender de seus erros, o jovem guerreiro foi transformado em um peixe escuro com escamas vermelhas e arrastado para o fundo do rio, onde permanecerá por toda a eternidade. Ou não.
“O pescador, ele conhece o peixe, sabe quanto vai dar, quando vai boiar, como vai ser a boiada, se é adulto ou bodeco (filhote). E sabe quando é hora de pescar e quando é hora de proteger. O invasor não, ele vem e leva o que tem. Bem ali tem um pirarucu de filho. Se fosse um invasor ele matava todos os dois. Nós fazemos todo um meio pra defender, pra ele não vir pra cá: vigília toda noite, todo dia.”
Dionésio Coelho, pescador
O caráter comunitário é um dos pontos mais marcantes do manejo do Arapaima, provando que a união, de fato, fez a força. Foi a partir da mobilização de pescadores da várzea amazônica, diante da escassez de determinadas espécies de peixes em algumas regiões, que começaram a ser organizados os primeiros manejos comunitários de pesca, em meados da década de 1970.
No manejo comunitário as decisões são coletivas e definidas em assembleias das quais participam todos os envolvidos na pesca, dos jovens que atuam na segurança dos lagos aos funcionários da parte administrativa, que cuidam das licenças e documentos, passando pelos pescadores e pelas mulheres que fazem a limpeza dos peixes. Antes uma atividade feita de modo tradicional e isolado, a pesca se transformou em um negócio comunitário.
Da união entre conhecimento tradicional e a ciência surgiram as bases para o manejo de pirarucu. Fruto da observação secular dos ribeirinhos, método de contagem populacional foi comprovado por pesquisadores e hoje é usado pelo Ibama como base para a definição da cota de pesca.
Outro aprendizado passado de geração em geração entre os povos da floresta, o respeito ao ciclo da vida está presente no dia a dia dos manejadores. Além de respeitar o tamanho mínimo de 150 centímetros dos peixes capturados, os pescadores obedecem a uma cota de pesca de 30% da população de peixes dos lagos manejados e se dedicam o ano inteiro à proteção dos lagos destinados à reprodução dos peixes, o que faz deles verdadeiros guardiões da espécie.
Com a certificação desse modelo sustentável e o monitoramento de todas as etapas do manejo, o pirarucu da Amazônia vem conquistando o mercado nacional e internacional.
“Nasci aqui na reserva e lembro que, em 2001, não tinha alternativa de nada aqui. Eu tinha uns 17 anos e a crise era muito grande, lembro de um certo dia eu e meu primo pensando onde a gente ia pescar um pirarucu pra vender e comprar farinha. Tinha dois bodecos em um lago só, entre mais de 40 lagos. E o restante disso tudo? Quem viu isso aqui quando não tinha nada e hoje vê assim, que vê que valeu a pena fazer tudo isso pra gente estar colhendo hoje o resultado do manejo do pirarucu.”
Edson Gonçalves, pescador
O fortalecimento das organizações comunitárias promovido pela implantação do manejo também refletiu na promoção da igualdade de gênero nas comunidades, com a inclusão das mulheres no processo.
Elas estão à frente de etapas como a limpeza e processamento do pescado, além do planejamento de aquisição de insumos para o trabalho de todos os setores e de diversas funções administrativas, inclusive em postos de comando.
Em uma região onde a cultura patriarcal sempre foi dominante, essa nova posição assumida por elas no processo de manejo contribui para a construção de um novo cenário, de valorização da mão de obra e da redução de diferenças seculares impostas a gerações de mulheres amazônidas.
Após duas décadas de manejo, os ganhos vão muito além da recuperação da população de peixes nas áreas protegidas da Amazônia. Eles passam ainda pelo aumento de mais de 100% na renda familiar dos ribeirinhos e pelo fortalecimento comunitário, com conquistas que melhoram a qualidade de vida nas comunidades.
Melhorias refletidas pela aquisição de equipamentos que facilitam e otimizam o manejo, como barcos, motores, geradores, flutuantes e veículos, mas também por conquistas comunitárias, como sistemas de energia solar, poços artesianos e água encanada, além da construção de centros comunitários, postos de saúde e escolas.
Agora, as comunidades investem na implantação do ensino técnico voltado para a pesca sustentável para capacitar os jovens que já atuam no manejo de pirarucu e na educação ambiental para preparar as próximas gerações de pescadores – e guardiões da Amazônia.
“A Amazônia pra mim representa uma coisa muito importante na minha vida, na vida dos amazonenses, se eles souberem cuidar. É um berçário de tudo: de peixes, de aves, de quelônios, de répteis, de tudo. A Amazônia, pra mim, é isso: representa uma área muito rica. A floresta é tipo uma mãe, a mãe natureza. É um ser que Deus colocou pra gente cuidar e, se nós soubermos zelar, nós a teremos por muitos e muitos anos. Agora se a gente não souber cuidar, vai acontecer igual em vários lugares, onde nem água existe mais.”